A sabedoria dos nossos ancestrais nos une e nos fortalece¹, por Tiago Nhandewa²

 

Uma pandemia conhecida como COVID-19 da família do Coronavírus tem ameaçado a saúde de toda população Mundial. Ela surgiu no continente asiático, especificamente na China em uma cidade chamada Wuhan. Os cientistas e pesquisadores tem atribuído a transmissão do “vírus” para humanos através de um animal, o “morcego”. Com isso o vírus foi se espalhando pelo mundo todo, a praticamente três meses ele está no Brasil fazendo muitas vítimas. Diariamente famílias perdem seus entes queridos. Os Estados brasileiros estão tomando medidas de prevenção para que o COVID-19 não ganhe proporções maiores. As pessoas foram obrigadas abdicar das coisas que mais gostam para tentar se protegerem do mal que se alastrou em cada canto do Planeta chegando até as comunidades que estão em lugares mais remotos e de difícil acesso, nem os mais isolados estão seguros. Contudo, nós “Povos indígenas” também estamos sendo vítimas, o primeiro caso de contaminação e morte foi entre os Yanomami e depois atingiu outras etnias, e os casos não param de aumentar. As entidades públicas e as organizações não governamentais estão tentando mesmo que com suas limitações ajudar as comunidades indígenas por meio de diversas formas, sendo os mais recorrentes com entregas e doações de gêneros alimentícios e também produtos de higiene pessoal. Sabemos que talvez não seja o mais adequado, porém é necessário porque muitas famílias estão deixando de trabalhar e consequentemente não teriam como sustentar suas famílias. O vírus que se apresentou nesse século (XXI) foi capaz de parar até mesmo as grandes potências mundiais, colocando-os em condição de “lockdown” (bloqueio total). Líderes de diversos países foram contaminados, provando assim que ninguém está imune e acima da lei da natureza, todos estão sujeitos ao contagio pelo COVID-19.

Nós indígenas e não-indígenas estamos passando por um momento em que todos são obrigados a ficar em isolamento social, podendo sair de seus lares somente em casos emergenciais. Os indígenas em seus Tekoá (territórios) e os não-indígenas em suas “casas” e em seus “apartamentos”, aliás para aqueles que tem um lar, um abrigo, um teto para ficar em isolamento social. Agora para aqueles que não tem estão contando com sua própria a “sorte”, isso porque estão as margens da sociedade, estão esquecidos, estão excluídos, foram renegados pelos seus “semelhantes”. Nós indígenas só não estamos na mesma situação porque ainda temos nossos Tekoá, mesmo que com constantes ataques aos nossos direitos em plena pandemia, ainda temos o pouco que nos “deixaram”, no entanto, diariamente “eles” vivem querendo nos tirar a qualquer custo os nossos quase 13% de “terras sagradas”, aonde nossos antepassados viveram e aonde vivemos, tudo sempre em nome da “ordem” e do “progresso”, lema mais clichê e conhecido por todos e que não sai dos projetos governamentais (Colonial, Imperial, Republicano e Democrático), anos após anos, décadas após décadas, e assim já se passaram 520 anos.

Desde antigamente, lutamos e resistimos para continuar existindo. Como que conseguimos tal façanha?  A resposta a essa indagação não poderia ser outra, se não dizer que nosso território, nossos conhecimentos tradicionais, nossas formas de conceber o mundo, nossas cosmologias, nossas crenças e a natureza sempre foram nossos principais aliados, as nossas armas e as nossas estratégias de sobrevivência. Esses conhecimentos desde cedo aprendemos com nossos mais velhos, nossos anciãos, são eles que nos transmitem a sabedoria milenar que vem passando de geração para geração. Com nossos Nhaneramõi kwery (nossos sábios), aprendemos a ser pessoas conscientes para viver no mundo que Nhanderu (Deus) nos deu. E agora não tem sido diferente, todo esse conhecimento está sendo colocado em prática, as comunidades continuam usando dos conhecimentos ancestrais para se protegerem e não deixando esse mal trazer grandes perdas. Pois sabemos que o mundo que vivemos já não é mais o mesmo, agora é outro, e os nossos métodos de isolamento longe da sociedade não indígena não é mais possível, as cidades são vizinhas aos Tekoá, e isso dificulta as estratégias de se refugiar para longe, então usamos outras meios que nos deixem o mais seguro possível, um deles é controle das pessoas que saem e entram nas comunidades, no entanto isso tem funcionado muito bem. Na medida em que o vírus vai se aproximando as comunidades se reajustam e reforçam suas práticas culturais para que não tenham contato com possíveis transmissores da COVID-19, pena que ainda nem todos tem a mesma realidade.

A pandemia não deve nos desanimar, ela está nos fazendo refletir, porque ela é resultado do que estão fazendo com natureza todos dias, cada vez mais estão destruindo o que Nhanderu nos presenteou para vivermos em harmonia com os seres sagrados das florestas, dos rios, dos oceanos, das montanhas, do ar, do vento, do fogo e da própria terra. Os humanos não devem culpar somente um “animal”, temos que olhar para nossas ações enquanto seres humanos, não podemos mais continuar destruindo o nosso planeta, devemos pensar em nossos filhos, nos nossos irmãos, em nosso netos, nos nossos pais, em nossos avós e nas próximas gerações, porque eles irão precisar dele, até porque ainda não temos planeta B, C, D … enfim, não há outro planeta habitável em que possamos colocar nossos familiares e nossas coisas e partir rumo a um novo mundo.

Portanto, nesses tempos de isolamento social, estamos distantes em tempo e espaço, no entanto estamos ao mesmo tempo conectados não em matéria de carne e osso, mas conectados em espírito. Nossos pensamentos estão ligados por uma vontade de viver por mais uns “cem anos”, quem sabe mais “520 anos” e poder desfrutar da beleza da vida, das coisas, da família, são tantas coisas… mas uma certeza temos, estamos juntos e unidos para superarmos essa pandemia. Ela vai passar! Nhanderu vai nos ajudar!

 

 

¹ Texto premiado em 2º lugar no concurso NHEENGATU – Fala bonita: CONCURSO LITERÁRIO PARA ESCRITORES INDÍGENAS, com o tema “Em tempos de isolamento: distantes, porém unidos”, uma iniciativa do Instituto Uk’a – Casa dos Saberes Ancestrais em parceria com a Livraria Maracá, em junho de 2020.

² Tiago Nhandewa, de origem Guarani Nhandewa, mora na Aldeia Nimuendaju. Professor indígena formado em Licenciatura Intercultural, em Pedagogia convencional, com Especialização em Antropologia, e atualmente faz mestrado em Antropologia Social na USP. Recentemente começou a se aventurar pela escrita de textos de memórias de aventuras de infância, primeira obra: “Quando Eu caçava tatu e outros bichos”.